quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

21. A Primeira Vez (preparativos)

Na suíte, eram três horas da manhã. Sofia acorda, e fala para si deitada:

Ao olhar pro lado o que eu podia ver era uma cama. Onde estará Helena? Eu acordei procurando por ela...

Sofia passeia pelo quarto em silêncio, explorando bem todo o espaço:

Estranho. Helena faz a cama sempre tão bem feita antes de sair. Deve ser o...

TRIMMMM. TRIMMMM...

Sofia atende ao telefone.

Põe o fone no gancho, senta na cama de Helena:

Era o telefone. Meu primeiro cliente.

Ela tem o aparelho aos ouvidos. Henri é quem lhe fala (flashback):

- X será o seu primeiro cliente, Sofia. Cuidei para que se tratasse de rapaz educado. Ele é até bonito. Precisa de seus cuidados porque anda um bocado carente. Herdeiro, dono de uma empresa citadina de médio porte, disse no trabalho que tinha consulta médica.

Sofia apenas faz que sim com a cabeça. E desliga o telefone.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

20. Helena - Parte 2

Helena era a típica heroína solitária chicana. Quase anônima como a grande maioria. Nunca soubemos o seu nome verdadeiro; nem eu nem o mais poderoso de seus clientes. Participara de inúmeras revoluções, todas elas no continente americano, sempre sob a proteção do pseudônimo.

Cansada de sangue e mais sangue, ela chegava à Amsterdã para oferecer o seu corpo vivo ao mortal que fosse. Precisava arrecadar junto aos senhores de bem a quantia necessária à compra da revolução. Em troca, oferecia-lhes o prazer que seus móveis, imóveis, esposas e estilos de vida não conseguiam.

Helena não negava o mundo à sua volta, mas simplesmente o combatia. A Revolução ela dizia que não acabou. O que aconteceu à luta de Helena é o que a trouxe a Amsterdã. “A revolução mudou” – ela sustenta – “a única Revolução possível é a das idéias”.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

19. Esquema Amsterdã

- Helena de um lado, eu do outro. Era assim que nos organizávamos. Ela tinha o seu ramal e eu o meu. Um console espelhado adjacente a cada cama... Também achei meio brega. O telefone tocava. Era o táxi lá embaixo esperando por...Helena...quase sempre. Eu ainda não tinha feito a minha clientela. E Henri também é um lerdo. Bem. Era assim que procediam os clientes agenciados.

E era Henri
que os agenciava
a grande maioria
deles


The business man, como manda o figurino: Henri é um ator perfeito. Um democrático liberal de direita que limpa a própria casa. Ele pensa que assim ele consegue convencer todo mundo; e ele consegue. Taí. É por isso que esse babaca está aqui nos agenciando. Clientes agenciados, clientela também. A gente depende dele, babe! É isso.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

18. Omitir não é Mentir

Sofia está calada:

Eu ouço tudo isso em paz. Posso até dizer que me excitaria se tão cansada eu não estivesse. Queria saber... Precisava entender aonde Henri queria chegar. Louros? Criminosos? Loiros criminosos comendo-lhe o cu?

E Henri continua (ou foi só nisto que Sofia prestou atenção):

- É isso que eu vou ser, Sofia! Eu vou ser uma prostituta...

Sofia o ouve junto à parede com as mãos espalmadas. Talvez, quisesse que Henri a comesse, que a comesse com força...que a comesse com força como se ela fosse um presidiário.

Henri fala e gesticula sem que Sofia possa escutar a sua voz. Aos poucos, a imagem que ela tem do homem se torna mais e mais desfocada. O semblante de Henri é sugado para o centro do quadro como um redemoinho, até que some e dá lugar a um todo branco e luminoso.

Sofia continua com as palmas das mãos junto à parede. Deste ângulo, podemos ver apenas um lado dela: seus braços, o pescoço. Ela tem o rosto todo virado para o lado oposto, também junto à parede. Respira devagar:

Helena me pegou pelos seios, pelas costas. Tocou na minha buceta com um de seus dedos, descendo para dentro de mim, depois saía; depois o outro. Beijava-me com a língua por detrás da minha. Ela era minha! Hoje e amanhã também de manhã no seu dia seguinte
No seu dia
seguinte

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

17. No apartamento de Henri

São 21h17. Henri dá costas ao lustre alto e cor de nada. É dele o primeiro plano.

- Sofia, uma prostituta: é isso que vou ser. Ora, mas você também não o é? Então não me negue. Pouparei-a dos detalhes. Que lhe digo é que me interessam os piores crimes, os piores criminosos. E deles eu quero cuidar.

Henri caminha leve e adiante. Ele diz:

- É para eles que eu vou olhar quando ninguém mais o fizer. Não preciso dizer que prisão nunca foi e nunca será solução para os delírios de um psicótico. Nada muda nada e ninguém a não ser uma possibilidade melhor.

Eu vou dar-lhes...eu vou dar-lhes o meu suor. E ouvirei seus mais infinitos segredos. E, quando então, desbaratinados em enfim liberdade, derem-me as costas, deles já terei colhido os louros e neles depositado o meu esperma.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

16. Tentativa e Erro

- Sofia, você não vai acreditar, mas eu tive um sonho erótico contigo esta noite.
- Haha. Mentira!
- Eu disse...
- Como foi?
- Ah. Não conto.
- Não conta por quê?
- Porque quero que você descubra.
- E por onde eu começo?
- Sugiro método de tentativa e erro.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

15. Helena


Fazia duas horas desde a saída de Henri. Sozinha, tratei de avaliar melhor a locação, o que não me custou mais que alguns minutos. O interfone tocou. Alguém, àquela hora, conseguiu a proeza de achar o 914 em meio a outros 1.315 quadradinhos. Era a minha companheira de quarto, que voltava de Milão. That’s all about egos, ela havia justificado o destino, de pronto, pelo celular e em inglês mesmo.

- Como você deve saber, me chamo Helena.

- Eu não costumo me chamar! Haha. Mas que Seja. Chamarei você assim mesmo. Que nome bonito, Helena. Muito prazer.

Ela sorriu quase debochada movendo o nariz em direção ao queixo. Por costume, procurei pelos olhos da mulher com quem passaria a próxima temporada, se tudo desse certo, e Helena parecia realmente não estar interessada em tal tipo de intimidade.

Pois bem. – eu pensei – Já está tarde mesmo. Amanhã nós nos falamos.

Ela deixou a mala, preta, mas de fino gosto, entreaberta ao lado da cama. De lá, tirou apenas uma camiseta, uma bermuda de dormir e a toalha com a qual tomaria banho.

Virou-se pra mim e disse:

- Então é você que eu vou aturar nos próximos três meses? Bonitinha. Veio à Amsterdã pela grana com essa carinha de pobre menina rica? Convenhamos: não foi por isso, foi? - ela riu doce e forte. Os olhos de Helena eram águia com a boca na presa.

Ao sair da suíte, secou, com o pano branco que eu deixo atrás da porta, todo o chão dignamente. Dobrava-o em três ondinhas e secava o piso: um lado do pano e depois o outro. Torceu-o dentro do box e passou uma água nele. Tornou a torcer. Dobrou-o apenas úmido e posicionou-o exato sob os pés de quem entraria depois.

Por fim, lavou as mãos na pia com o sabonete líquido de aloe vera que sobre o suporte de aço em forma de flor eu coloquei. E dormiu pesado até as nove da manhã.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

14. Amsterdã Parte 2 - (or Norway?)


- Seus olhos estão vermelhos, Sofia.
- São as luzes, bobinho – segurou-me pelo queixo – Olhe pra cima. O que você esperava?
- O que eu espero?
Estávamos no quarto de fundos 914 em um antigo prédio no distrito da Luz Vermelha, seu novo - e provisório - local de trabalho. Não era mesmo tão aconchegante quanto pensava. Eu estava hospedado num conjugado pequeno e muito limpo a vinte minutos de lá.

Fazia duas semanas desde a nossa chegada. Sofia, ao se aproximar da janela, comemorava a Lua cheia cortada ao meio cantando baixinho a única música que sabia em holandês.

- Sei cantá-la em inglês também, Henri. A Orquestra dos kaizers chega na língua dos lords a qualquer canto do mundo, não chega?

I see what I have created
And count the lives that have been wasted
What before was balanced
Has become unbalanced
But, time has been kind to my handiwork


- É provável que chegue, sim. Você poderia cantar outra música também, não acha? Há muito não a vejo com um brilho tão sincero nos olhos. Cante, Sofia. Cante. Fale ao mundo seja em que idioma for, sem, contudo, desviar os olhos da platéia. Diga a quem cabe as suas idéias; aos demais qualquer besteira.

I've laid it brick by brick
I've stood on the bow
And steered the ship straight


- A platéia quer lhe ver, Sofia. Ela quer ser vista também, e você bem sabe.

I've risen in the ranks
And broken some bones
But, my conscience is...


- Tá. Essa música é de uma banda norueguesa, não é não?

...clear.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

13. Amsterdã


Eu me lembro, como se fosse hoje, da vez que decidimos sair pelo mundo afora. Era início da noite, metade do dia. A Terra e todos os seus satélites giravam indiferentes; os outros planetas também. Plutão estava frio e calculista em seu esconderijo de astro. Mercúrio queimava por dentro: primeiro, corado, perto, bem perto do Sol. Éramos um casal de apaixonados.

Eu assentia que Sofia quisesse o Universo ao passo que ela me doutrinasse sobre o poder da sofisticação. Era inato. Relato que a jovem mulher nada dizia a respeito, mas levava à boca a piteira, incapaz de admitir que amarelassem quão formosas são as suas mãos de fada. Só assim é que ela permitia-se uma cigarrilha.

Nunca lhe faltou merecimento. Não fosse o meu desdém pelo assunto, eu arrancaria o misticismo destas solitárias páginas e lhes daria vida.

Sofia tinha lobos e lebres e lábias de outrem a palpitar-lhe as veias. Isso foi desde sempre. Agora, é tudo polução noturna. E nós uma história sobre dois jovens tentando ganhar a vida fácil. Luzes vermelhas. Longe das câmeras e dos antigos caminhos, nós éramos menininhos sobre as suas bicicletas. A vida, o príncipe do primeiro baile.

12. Cidade das Mulheres


Por causa do espelho na porta, a primeira visão que o convidado tem na residência do adorável anfitrião é a de si próprio. A primeira e a última. Lembro que as cantoneiras da entrada eram moldura para o espelho atrás de si e o conjunto um retrato de mim. Henri gritou forte e gentleman:

- Entra! – ele estava se vestindo no quarto e então tratei de avançar, fazer pose para o espelho e me ver sem moldura até que uma sombra chegasse devagar para me mordiscar da barra da camisa surrada à nuca. Imagino que Henri deva ter percebido o meu desconcerto antes que eu pudesse fingir que pensei em tudo. Mas foi discreto.

- Venha, Catarina. Vamos à Cidade das Mulheres de Fellini! Você quer vinho?

Então o quarto de Henri seria a cidade das mulheres de Fellini e eu uma delas. Aceitei o vinho e os bombons que me ofereceu. Acendi-lhe a paixão e o cigarro. Recusei o que me deu em troca. Assistimos ao filme cujos quadros eram fotografias; fotografias e espelhos. Eram mulheres desesperadas.

11. O Amigo

Liguei pra ele pela manhã e ninguém atendeu. Não me pergunte pelo por que do pronome. Quem mais poderia estar naquele apertado quarto-e-sala? Para haver passagem no corredor, Henri mantém a custo a porta do banheiro fechada. Valendo-se dessa necessidade, ele aproveitou e pôs um espelho no lado de fora. Ou seja: você toma banho, seca-se todinho às cegas. Só vê a si no final, depois de vestido e enxugado. Embora, se mora sozinho, é provável que Henri ande nu pela casa.

Voltei a telefoná-lo depois do almoço – do horário de almoço em verdade; nada comi o dia inteiro. Ele ofegou e, só então, respondeu curto, grosso e asmático:

“Alô?” “Ah... Sofia? Olá Sofia. Como vai?”

Foi o máximo de interrogação que obtive. Disse-me que certo amigo passaria algum tempo em sua casa por conta de um curso. O amigo, até então, não tinha nome. Henri acabava de chegar de uma corrida com o amigo, agora hóspede, e estava cansado demais para o meu programa. “Eu agradeço o convite” – qualquer que ele fosse, imaginei – “, mas fica para outro dia” – pontuou.

10. Encerre em mim

- Resistir-lhe é morrer em mim. É encerrar-me em mim, Henri: é encerrá-lo. Será que você não vê? Não respeita a minha paz? Sabe que a você sempre retorno. E, no entanto, faz pouco caso do pouco que lhe ofereço. Você quer sempre mais e melhor. Quer sempre o futuro. Quer, sobretudo, o que não tenho, Henri; o que não tenho. E ao procurar em mim o que não tenho, faz que eu o procure e que o tenha e seja.

Faço com que me deseje
Ele sorri

9. Carta de Sofia a Henri

Sempre fui mais escrita que falada. E tu bem sabes, meu amor. Ao meu lado a tua segunda pessoa, a primeira dos meus olhos, é feita de refém. Lanço o lápis sobre o cartão, lanço mão de qualquer antigo encanto. Vou ao pretérito, já mais que perfeito, quando foras tu meu único desejo à procura. Encontro um ponto de interrogação. Vou à tua época, à tua alma tão erudita.

E quando o faço, me atormentas, Henri, de modo que às vezes me canso de ti. És tão profundo e exaustivo que apenas algumas horas, apenas alguns minutos de ti em mim são o suficiente. Pensei em dar-te um concerto de Chopin e até uma ópera de Wagner - algo que o fizesse perceber-me, perceber o que causas em meu corpo; que o fizesse ler o que sinto quando vejo as luzes de tuas páginas e confesso-te que me tenta e que me trai o torpe desejo de fechá-las.

8. Angústia

Estávamos prestes a terminar. Ou Henri me deixaria enfim ou eu o faria abandonar-me. Cansei-me de suas misérias, de seu choro forte, de seu corpo frágil cada vez mais magro. Como podem idéias tão densas saírem dali, daquele humano tão suave e perecível? Toda vez que o encontro, torna-me novamente impossível deixá-lo, seja por extrema pena que me acomete, ou por profunda devoção ao que me causa. Henri constrói seus castelos com a pressa de quem tem os dias contados. Ando apavorada.

7. O Idealista

Mudei de idéia, Sofia. Não vou mais correr contra o tempo nem perdê-lo para adiar o juízo final. Outro dia você tornou a me perguntar, porque eu insisti que repetisse, o que era mais importante na vida. Confesso que quase me escapuliu um rebelde e péssimo título de livro; qualquer termo que fizesse menção ao imenso amor que lhe tenho. Preferi dizer-lhe que não responderia a um tipo de pergunta como essa. “Não agora pelo menos” – reiterei com surpreendente firmeza.

Agora digo, Sofia, como quem não quer dizer nada, quetalvezparamim, o que há de mais importante na vida sejam as idéias ou mesmo os ideais - Baudelaire diria à votre guise. Eu sempre preferi o masculino. Gosto daquela sua última idéia de ser pó de estrela mais que a da fábrica também. E é às idéias que eu mais dedico o escasso tempo que hoje me sobra.

Quando me toma a pergunta sobre o que deixarei para a posteridade, eu só consigo pensar em como torná-las – a pergunta e a posteridade – o meu próprio dia-a-dia. O meu dia-a-dia, Sofia...eu me pergunto como não interrompê-lo

como ser vela
e também leme
ser remo
e ser fermento

6. Velório


A modelo, descalça, com camisa patriota (da copa de 70, se não me engano) chamava-se Sofia e, assim como não tinha escova de cabelo, não tinha sobrenome. A pobre só escutava os conselhos de seu cavalo Macaco. Era mais feliz.


Você sonhou que cortava o cabelo esses dias, lembra? – Sofia adora respostas e livros com respostas sobre os sonhos que ela teve. "Mais que bonito!" - repliquei. A mim, para quem tudo é rodas gigantes e montanhas russas...parece-me tão divertido bailar aos sonhos de outrem. Não entendo tanta resistência consensual a respeito deles. O que mais poderíamos fazer com fantásticas fábricas de chocolates senão voltar os olhos em direção aos grandes portões dos castelos e fazer que sim?

O mais divertido é que o ímpeto que tive, no momento em que ela arriscou narrar os desenhos do inconsciente, foi de dizer "Não! Por favor, não. Eu quero a moça de cabelos longos! "As meninas todas agora querem cortar o cabelo. Vai que você resolve cortar também? Tolir seus fios de ouro de bailarem ao vento de anil? Eu não quero, eu não deixo. Mas que diferença isso faz?

Acho que não tem mais jeito. Cuspido no céu e inferno cosmopolitas, o desejo de tornar-me fazendeiro morre sempre no terceiro dia. Subir aos céus e sentar à direita do todo-poderoso? Eu queria voar, Sofia! Talvez já tenha vencido o meu prazo de validade. Quem existe de verdade teme que a redenção seja um tédio.

Dope
Poesia
Ou amor por caridade
Desta vez, Sofia
Parece não ser remédio

5. Juízo Final

-Bento, bento é o frade
-Frade!
-Na boca do forno!
-Forno!
-Tirar um bolo!
-Bolo!
-Farão tudo que seu mestre mandar...
-Faremos todos!
-Se não fizer...
-Levaremos o bolo!


Eu estava às voltas com aquele meu Ensaio sobre como adiar o juízo final e resolvi parar um pouco para escrever-lhe. Eu vou ter tempo de sobra quando ele chegar. Apenas tenho de fazer bom uso.

Sonhei com você esta noite. Eu ando sem tempo, eu sei. Você tão perdida e eu com conversas de botas batidas toda vez. Também tem me olhado menos nos olhos e eu sinto falta. Eu gosto de você, sabia? Você tenta me fazer de bobo. Eu me faço. Eu me desfaço por você e você se desfaz de mim! Acha isso justo, Sofia? Quando foi a última vez que falei em justiça nem me lembro.

Quando vamos entrar na classe média sozinhos e então nunca mais sair? Eu vi um sofá divino outro dia. Ele tinha espaço para cinco ou seis Tias Délias, o que me pareceu bastante adequado. Você diz que eu devo fazer as unhas. Talvez, não seja má idéia. Outros caras o fazem e elas são todas irregulares mesmo. Quando a podóloga – a especialista no assunto pra quem não sabe – vier com aquelas parnafernálias que a gente vê nos filmes eu não terei dúvida: Quero quadradas. Tudo quadrado!

4. Desculpas

Já falei sobre o dia em que Sofia sentiu ciúmes? Ah. Não me venha com esse papo pós-moderno de novo. Ela sentiu ciúmes, sim. Enrubesceu-se tanto que ficou quase como quando nos beijamos escondidos à meia luz da 1º de Março. Eu me lembro bem, era uma segunda-feira. Tentamos umas três exposições, mas nenhuma parecia estar ainda aberta ou em cartaz. Eu comprei umas poesias na porta de uma delas pela metade do preço e por pura piedade. Não conseguiria admitir empatia pelo rapazinho de barba, mesmo se os versos dele valessem alguma coisa. Fomos até o fim da rua estreita de pedras portuguesas e tomamos três ou quatro copos de Salinas.

Aqui estou eu emendando um assunto no outro. Falava sobre o rubor na pele branca de Sofia. Ela tinha os olhos tensos; o olhar era praticamente o mesmo – surpreendi-me. Foi a primeira vez, desde as juras de amor, que eu me senti desconfortável ao seu lado. Não sei o que temia, ou se tremia – não me lembro. Pensei em levar-lhe uma lembrança. Lembrei que Ovídio, latino de 43 a.C., registrou em um de seus romances, a título de premissa principal, que um infrator não deve se mostrar culpado além do suficiente. Sabe-se lá se ele estava ou continua certo. Todo mundo entende que, em nosso tempo, delegam razão a Freud, gregos e liberais.

Por via das dúvidas, concedi a Sofia meu mais terno abraço o tempo que bastou para que ela se convencesse da gaze e do esparadrapo. Eu cobri sua ferida infantil com beijos e merthiolate que não arde. Ela se escondeu na caverna, bichinho do mato no inverno. E ainda fez bico! Olha, mas vejam só. Então eu disse, como dizia o meu avô, que iria pôr o seu bico no feijão! De manhã, ela saiu cedo do edredom esconderijo e me trouxe café na cama. Sofia aborreceu-se com a minha lentidão ao acordar. Resolveu descontar no cinzeiro. Eu já disse que Sofia fica linda quando aborrecida?

3. Possivelmente

Chegou o dia 30 de junho e eu lhe dei um presente de dois meses de namoro. Resolvi assumir, já que nenhum de nós conseguia lembrar em que ocasião foi dado o primeiro beijo, que o dia em que o nosso amor começou foi o mesmo do meu aniversário, 30 de abril – data em que ela diz ter-se percebido apaixonada por mim. O clichê não me incomodou e eu resolvi tomar o depoimento como verdade para que os dias continuassem transcorrendo como sempre, um após o outro. Eu, de fato, não me ative ao momento, mas a confissão me obriga a uma desculpa convincente.

Desde ainda castos, passamos a conjeturar o futuro, o próximo e o distante, como se ele estivesse sempre a dois palmos de distância, ou à distância necessária para que pudéssemos vê-lo a ponto de sentir-nos contemplados. O presente fazia jus ao furtivo homônimo que a língua portuguesa fez questão de lhe oferecer. E o melhor dos presentes são as surpresas. Por isso, partimos por aí, bonecas russas da Zona Franca de Manaus, mostrando até que pobre pode fazer biquinho pra dizer "Je t'aime". Isso quando pode. Nobre de cobre que é, plebeu dourado que sou, partimos em busca da possibilidade.

2. Sofia

Quando Sofia ri, e ainda mais quando ela ri descontrolada, eu digo: “Ufa!”. Não agüentava mais o silêncio em que se passavam as horas antes. Muito embora queira se tornar uma vaca hindu, Sofia compartilha que o Zodíaco não se mostrou muito favorável ao deitar seu Sol em Áries já logo no primeiro dia. Nem depois dos trinta alterar-se-ão mundos e astros: com ascendente estrategicamente posicionado na mesma casa do signo, ela carrega um Karma, a doses pouco homeopáticas de whisky, digno de uma princesa – aspirante à rainha – da mamãe: é a primeira no calendário estelar. Ainda bem.

Mesmo assim, senhora nobre ao fim do feudalismo, Sofia tem alma de anjo, asa dependurada por vôos demasiado altos ou sorrateiros, e um violão. Este último ela toca o tanto e com a freqüência necessária para conquistar qualquer garoto da idade. Natação, montaria, balé clássico, piano – nada que aprontou, ou que lhe foi aprontado, na vida parece mais rápido ou, ao menos, mais verdadeiro que as suas idéias. E ela não tem quase pressa de me contar. O culpado pela ânsia, repentina, made in England – revelou-me logo cedo – é o horóscopo; grande ditador de estripulias e dissabores o qual não consegue viver sem.

O horóscopo da revistinha que vem com o jornal de costume no domingo é a prova de que nem sempre é tão duro ser enganado. Até uma promessa, uma prece, um conselho pode ser bom. Se forem boas as promessas, as preces e as mentiras, elas então viram meias verdades; verdades partidas melhores que muitas por aí. O mundo de Sofia – seus sonhos de menina, maiores e menores desejos – eu torço, e me embriago de esmero quando parece soar sincero: eu torço apenas para que seja bom.

1. Recado de Sofia à Henri

Desde que descobri o pecado de Eva, nunca mais consegui despistar-me de seu labirinto. Se o preço do paraíso é o pesar, eu pago e saboreio a culpa com equivalente volúpia. E se viver já é, por si só, poder e padecer, eu trato de crescer ao som de poemas recitados por belos jovens como você; isso quando e se eu encontrar alguém que declame a sua altura e com o seu olhar de laguna.

Você toca no meu idealismo, no meu lirismo e nas minhas bobagens, e agulha pano vagabundo como se fosse seda. Você desperdiça o seu mel, para a minha surpresa, sem qualquer menção à economia. Eu torpedeio o seu realismo e você sabe. Você fala até de não saber mais, a essa altura do campeonato, de coisa alguma.

Índice

Capitulando
1. Recado de Sofia a Henri
2. Sofia
3. Possivelmente
4. Desculpas
5. Juízo Final
6. Velório
7. O idealista
8. Angústia
9. Carta de Sofia a Henri
10. Encerre em mim
11. O Amigo
12. A Casa das Mulheres

Amsterdã
13. Introdução
14.
15.
16.

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